Me sentei com Clarice Lispector nas mãos. Palavras para cá, ideias para lá, fechei o livro e me deparei com a outra, sem palavras, só batom. Aquela força me intrigou. Nascidas Clarice, Isabel, Carolina e tantas mais, como decifrar uma mulher? Foi então que o livro escorregou de meu colo e com estrondo se candidatou a argumentar. A literatura? Por que não?
Em meio ao feminino retratado por homens, existem versões delas. Eu acredito que, de certa forma, as mulheres das letras são herdeiras de Enheduana: a primeira escritora da humanidade. Poeta espiritualizada e escritora prolixa, em suas obras feminilidade rima com poder e competência. Nas terras da antiga Mesopotâmia em que floresceu a princesa, surgiram a escrita e o batom.
Como ela, Isabel foi princesa e protagonizou uma vida de realizações. A história exalta sua religiosidade e erudição. Mas a verdade é que, personagens ou autoras, os livros forjaram mulheres destemidas. Isabel transformou a sociedade machista em que exerceu suas três regências. Enheduana, por sua vez, influenciou os rumos de sua Mesopotâmia equalitária através da literatura, da religião e da alfabetização feminina.
Alfabetização que apresentou ao mundo o mundo de Carolina em sua obra “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”, traduzida para treze idiomas. Em cadernos encontrados no lixo, a catadora narrou sua trajetória voltada à sobrevivência e a seu ideal de escrever “a literatura do eu”. Elas escreveram muito. Enheduana, 42 obras assinadas. Carolina de Jesus, ensaios, romances, contos, peças de teatro e letras de música.
A música que tocou Clarice, a do batom, foi a escrita. Ela encontrou na literatura cúmplices e parceiros, com quem desenvolveu uma intimidade calada repleta de ideias. Com sua escrita, a mulher de batom vermelho e cigarrete em punho decifrou a mulher, o mundo, a literatura, e transgrediu o tempo. Todo seu, psicológico, para retornar ao berço. Afinal, todas mulheres das letras são herdeiras de Enheduana.

Rita Cassitas
Cadeira n° 1 na Academia Feminina de Letras do Paraná
Patrona Rachel Prado

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